Tenho transtorno bipolar e levei 10 anos para descobrir: caso de jovem serve como alerta

por | set 3, 2019 | Saúde

A jornalista e pesquisadora Kyene Becker da Silva recebeu por anos o diagnóstico errado sobre sua saúde mental. Em entrevista ao VIX, ela explicou por que o transtorno demorou mais de 10 anos para ser identificado e de que maneira o atraso em saber o que de fato acontecia causou, como uso de medicamentos inapropriados e até mesmo prejuízos na vida social.

Transtorno de bipolaridade: diagnóstico errado e seus impactos

Ao longo da infância, Kyene lembra de ter sido uma criança bastante agitada. “Ansiosa demais, intensa”, descreve a mestranda em Divulgação Científica e Cultural pela Unicamp.

Kyene relata que seu comportamento na escola, por exemplo, era de uma aluna inquieta. Ao finalizar suas atividades, ela sentia muita dificuldade em ficar parada e esperar os demais colegas finalizarem a lição. “Na época, meus pais e a escola acreditavam se tratar de rebeldia da idade mesmo”, diz a jovem de 27 anos.

O comportamento “rebelde” de Kyene, porém, foi se intensificando conforme os anos se passavam. Um professor até propôs que ela fosse matriculada em uma série adiantada, uma alternativa para sanar a inquietude da menina. Porém, a ideia não foi aceita pelos pais da garota.

Muitos de seus colegas faziam bullying e seu relacionamento não era o dos melhores com os demais alunos.

“Os colegas acabavam se afastando por acharem o meu comportamento estranho e extremista demais. Na quarta série, por exemplo, eu comecei a desenvolver uns tiques – eu fazia um movimento com a cabeça, parecendo estar jogando o cabelo pro lado. Sabe quando sua franja fica no olho e você balança a cabeça pra ela sair? Era exatamente assim.”

Jornada atrás de respostas

Desconfiados de que algo poderia estar acontecendo com a garota, os pais de Kyene começaram a procurar profissionais de saúde para explicar o que acontecia com a filha.

O primeiro foi um neurologista. Para os pais de Kyene, a resposta para o comportamento da filha era algo físico, logo este especialista poderia ajudar.

“Após exames e conversar comigo, o médico indicou que eu fosse levada a um psicólogo”, diz. Sob a orientação do neurologista, Kyene, que na época tinha 10 anos, foi levada à psicóloga que atendia em uma escola do município onde morava, Três Barras (SC).

A primeira etapa de psicoterapia ajudou a cessar os tiques-nervosos, mas não foi um processo contínuo, já que o tratamento foi curto e encerrado após algumas sessões.

Ataques de pânico

Segundo Kyene, a primeira vez que realizou um tratamento contínuo foi aos 15 anos. Tudo começou quando a jovem passou a ter crises de pânico constantemente. A primeira aconteceu enquanto estava na fila dos Correios e passou a sentir os sintomas do pânico.

“Comecei a sentir uma forte dor no peito, não conseguia respirar, minha garganta ficou seca, eu fiquei apavorada, pálida. As pessoas começaram a me socorrer e até tentaram chamar o SAMU, mas melhorei e apenas fui embora. Eu lembro de ter comentado com minha mãe sobre o caso, mas, como não se repetiu de novo em pouco tempo, achamos que havia sido algo físico novamente.”

A compreensão de que não se tratava de algo físico veio apenas depois que a jovem começou a entrar em pânico toda vez que ficava em meio à multidão e isso lhe acarretou em complicações na vida social.

“Parei de sair de casa e comecei a ter umas paranoias de que alguém estava me perseguindo e tentando me fazer mal – chegou a um ponto em que eu não conseguia ficar em casa sozinha porque achava que essa coisa ou esse alguém ia tentar fazer algo. Como meus pais achavam que eu estava exagerando, eles me faziam sair mesmo assim. Até que as crises pesadas de pânico começaram a acontecer e eu, simplesmente, saia correndo quando isso acontecia – ou me trancava no banheiro ou ia pra casa no meio da festa ou de uma reunião.”

Doenças diagnosticadas e remédios usados

Diante da situação, novamente, os pais de Kyene a levaram ao médico, mas dessa vez em um clínico geral. “O profissional me receitou um antidepressivo, Erva-de-são-joão, e disse para minha família me levar a uma consulta com um psiquiatra. O clínico me deu a receita para três meses, já que, na minha cidade, seria difícil encontrar psiquiatra rápido.”

Entretanto, como o remédio fez o quadro de Kyene melhorar, seus pais abandonaram a ideia de procurar um psiquiatra. “E eu acabei não indo e parei de tomar a Erva – cerca de dois meses depois, antes das receitas acabarem, porque, na visão da minha mãe, eu já havia melhorado e não precisava ficar tomando esse tipo de remédio ‘pesado’.”

Quando estava no terceiro ano do colégio, época em que foi feita a foto abaixo, as dores no peito e ansiedade aumentaram e seus pais a levaram a outro clínico geral. “Passei meses tomando fitoterápico e os sintomas acabaram melhorando, mas era sempre entre indas e vindas. Nesse meio tempo, apareciam outros sintomas, como esquecimentos.”

Durante toda a jornada de Kyene em busca do diagnóstico correto sobre seu quadro clínico, diversas foram as respostas dadas. A pesquisadora elenca: “Recebi diagnósticos de: depressão unipolar, síndrome do pânico, síndrome de ansiedade generalizada. Por último, o de transtorno bipolar.”

Os medicamentos usados por ela também foram variados: antidepressivos, fitoterápicos, ansiolíticos e estabilizadores de humor.

“Às vezes, quando a medicação dada por um profissional funcionava, o seguinte acabava receitando a mesma ou o antigo remédio associado a um novo”, explica.

“A Erva-de-são-joão, por exemplo, foram cerca de dois meses. O Pasalix (fitoterápico) foi um período mais longo, uns três ou quatro meses. Os ansiolíticos eram sempre receitados quando eu tinha insônia ou alguma dificuldade para dormir durante o período da graduação. Então, no máximo, em duas ou três semanas, eu parava. A Bupropiona (antidepressivo) – que eu usei durante a graduação – tomei por um mês só.”

Demora em diagnosticar bipolaridade

De acordo com o psiquiatra Elie Cheniaux, mestre e doutor em psiquiatria, psicanálise e saúde mental pela UFRJ, estudos apontam que o transtorno bipolar demora cerca de 10 anos para ser diagnosticado corretamente.

“Não é que são necessários anos de acompanhamento do paciente, mas vários motivos dificultam o diagnóstico. Em primeiro lugar, o paciente quase sempre é visto por psiquiatras diferente ao longo dos anos e em momentos diferentes – seria muito mais fácil se fosse o mesmo psiquiatra acompanhando”, pontua Cheniaux.

Para Kyene, a jornada atrás do diagnóstico correto teve fim somente depois que a jovem se consultou com um psiquiatra pela primeira vez, em 2013, quando tinha 21 anos e foi diagnosticada com um quadro de transtorno de bipolaridade. ****

O impulso para o diagnóstico certeiro da doença veio durante a faculdade de jornalismo, quando a jovem passou por uma fase depressiva e cogitou largar o curso por não sentir ânimo para os estudos. “Eu ia pra aula (morava em frente à universidade), respondia a chamada e ia pro banheiro chorar. Não conseguia ficar na sala.”

Em fotos da época, Kyene diz que sua fisionomia refletia o quanto sua saúde mental não estava bem. Ainda que sorrisse em fotos, a pesquisadora sentia-se desmotivada, sem apetite e chegou a marca de 45kg. Também foi nessa época que ela pensou em suicídio.

A bipolaridade é um transtorno crônico marcado pela alternância de dois estados de humor: a mania e a depressão. O primeiro quadro tem como características episódios intensos de exaltação e euforia, já o segundo é marcado por tristeza e desânimo constantes.

Em crises de euforia, o indivíduo assume traços comportamentais de de grandiosidade, julgando ter ideias e atitudes brilhantes, com espírito de liderança. Porém, isso gera um gasto de energia tão grande que uma hora ela se esgota e dá lugar a um estado depressivo, contrário ao que antes se apresentava.

No caso de Kyene, a alternância de estados acontece exatamente desta maneira: “Em determinados períodos ou quando há gatilhos [situações que desencadeiem a mania], meu humor pode oscilar. Tanto para baixo, quanto para cima – quando eu fico agitada, mais produtiva, preciso de menos tempo de sono, posso me colocar em risco, porque é um período que não penso muito, me sinto imbatível, que nada vai me afetar.”

Em sua opinião, a demora para a conclusão de seu caso deve-se a uma série de fatores, como a resistência da família a procurar profissionais adequados ao atraso no diagnóstico. A jornalista ainda cita característica próprias da doença e sua busca por profissionais somente quando estava em quadros depressivos.

“A própria busca por profissionais sempre acontecia quando eu estava em fases depressivas. Então, meu quadro era sempre tratado como depressão unipolar ou algo do tipo. Como as pessoas, geralmente, procuram ajuda só quando estão pra baixo, o diagnóstico de bipolaridade pode demorar anos.”

Distinguir o transtorno bipolar com o depressivo, de fato, não é algo simples e pode gerar confusão. Isso porque quadros de bipolaridade têm como características episódios de depressão e o único modo de diferenciá-lo do transtorno depressivo unipolar é a observação ou a informação de quadros de mania ou hipomania – o que geralmente pode ser difícil de ocorrer.

“Muitos pacientes com transtorno bipolar têm, nos primeiros episódios, apenas quadros de depressão. Acontece de o primeiro episódio ser só depressivo, o segundo também, o terceiro, o quarto… Só o quinto de mania. A rigor, enquanto o episódio de mania não vem, o diagnóstico de transtorno bipolar não pode ser feito, só de transtorno depressivo”, explica Cheniaux.

É importante entender que em situações em que os diagnósticos mudam, isso não significa que a pessoa tenha mudado de doença também. Ela sempre foi a mesma e o que se verificou foi o acerto do quadro clínico. É o caso por exemplo da confusão entre quadros depressivos unipolares e bipolares ou mesmo entre a bipolaridade ou esquizofrenia.

“Pode acontecer dos sintomas bipolares apresentarem caráter psicóticos, como delírios e alucinações, sintomas que são bem chamativos num primeiro plano e que deixam os sintomas da mania num segundo plano. Caso o psiquiatra não detecte os sintomas da mania e só note os psicóticos, ele pode, erroneamente, dar o diagnóstico de esquizofrenia, que apresenta sinais psicóticos, mas que, por definição, não sinaliza mania nem depressão. Com isso, o paciente bipolar pode receber o diagnóstico erroneamente”, alerta Cheniaux.

Tratamento para bipolaridade teve início conturbado

O começo do tratamento da jornalista foi tão conturbado quanto o acerto de seu diagnóstico. Ao procurar a clínica para cuidar de seu caso, foi indicado a Kyene o uso de antidepressivos e ansiolíticos por algum tempo, antes de o diagnóstico ser finalmente fechado.

Em um primeiro momento os remédios fizeram efeito e a deixaram mais disposta. Porém, todos os efeitos positivos dos remédios acabaram gerando efeito rebote: dois meses depois, os sintomas de Kyene voltaram muito piores a ponto da pesquisadora não querer sair da cama e pensar em largar o curso.

“Na época, sem saber que eu tinha transtorno bipolar, também não sabia que o uso de antidepressivos sozinhos podem causar o que os médicos chamam de virada maníaca – que é quando você está em uma crise depressiva e, de repente, passa a viver uma crise de mania.”

Segundo a pesquisadora, o uso do estabilizador naquele momento foi dado porque o ambiente onde ela estava não era favorável para ela e estimulava suas crises. Mas o remédio acabou funcionando muito bem em seu corpo e ajudou em seu diagnóstico: o de transtorno bipolar.

Consequências do diagnóstico tardio

Ter descoberto tardiamente sua doença trouxe consequências para o corpo e para a vida de Kyene. A pesquisadora cita, por exemplo, a dependência de ansiolíticos durante o diagnóstico de transtorno bipolar.

Além da dependência do remédio, Kyene também acredita que muitas situações incômodas e perigosas poderiam ter sido evitadas não fosse o diagnóstico tardio de sua doença.

“Eu tive muitas perdas sociais, como afastamento de amigos e família, por conta do meu comportamento, e materiais e já cheguei a gastar de forma compulsiva com coisas que eu nem precisava. Mas, de longe, uma das piores coisas foi a tentativa de suicídio”, diz ao se lembrar das consequências da falta de tratamento adequado para seu quadro clínico.

“Não sentia vontade de comer, nem de fazer nada. Como eu tinha perdido quase todos os meus amigos, eu acreditava que era uma péssima pessoa, por isso, ninguém ficava perto de mim. Eu simplesmente sentia um vazio e uma culpa enorme em tudo o que estava acontecendo. Felizmente eu sobrevivi”

Conselho para quem suspeita ter bipolaridade

Com a ajuda adequada, Kyene afirma que sua vida mudou completamente. “Claramente, hoje, eu tenho qualidade de vida. Além de me conhecer mais, aprender a identificar os gatilhos de crise e quando estou entrando em uma – o que ajuda muito no tratamento, já que eu consigo tratar a crise logo no início e, isso, implica em menos problemas na minha vida como um todo -, eu levo uma vida normal. Com a medicação correta, hoje eu encontrei equilíbrio. Eu percebi que o que acontecia comigo não era rebeldia ou gênio forte.”

Atualmente, ela precisou interromper o tratamento, mas já entrou no processo para retomar os devidos cuidados. Além disso, se no passado o convívio com outras pessoas foi uma grande questão para a pesquisadora, hoje em dia ela pode se considerar uma mulher rodeada de amigos e que pode contar com a ajuda deles para a sua doença.

Por isso, a quem suspeita viver uma situação parecida com a de Kyene ou tem a desconfiança de ter um quadro clínico ligado à saúde mental, a jovem aconselha:

Transtorno bipolar