Ao iniciar a carreira na especialização, 15 anos atrás, o mastologista Daniel Gallo – médico especializado em mamas – adotava uma conduta diferente da que segue hoje com suas pacientes.
Com a frieza frequentemente desenvolvida por profissionais de saúde que lidam com doenças graves no cotidiano, ele mantinha certo distanciamento emocional dos casos que atendia e prezava por seguir à risca o protocolo médico da época: realizar a mastectomia, isto é, a remoção total da mama, diante do diagnóstico do câncer em casos avançados.

“Havia outros tratamentos. Mas, entendia-se que a mastectomia servia para um controle loco-regional maior sobre a doença, diminuindo a recorrência local. Os protocolos de quimioterapia eram menos desenvolvidos”, explicou o especialista.
Mas o sonho de uma paciente mudou totalmente sua percepção. Beth (nome fictício), de 34 anos, chegou em seu consultório no ano de 2004 e com o estágio avançado da doença. E o que para Gallo seria só mais um tratamento como tantos outros acabou mudando o rumo de sua carreira.
Sonho de casar em vestido de noiva

A paciente havia lhe procurado após perceber um caroço grande no seio por meio do autoexame. Foi constatado que ela apresentava um tumor de mama localmente avançado, isto é, grande e evoluído ainda na fase de diagnóstico.
Conforme explica o especialista, Beth se apresentava com várias questões preocupantes. “Ela se encaixaria em um tratamento paliativo, com suporte às necessidades básicas, mastectomia e quimioterapia paliativa, pois a doença dela já era muito avançada. Não existia chance de cura, somente controle e suporte”, diz. Além disso, o câncer já havia chegado a outros órgãos.
No entanto, ao saber da proposta do tratamento, a paciente revelou que não queria retirar o seio, e o motivo comoveu o médico.
“Eu me lembro como se fosse hoje, foi no começo da minha carreira na especialização. Ela me contou que estava com o casamento marcado, havia gastado todas as suas economias no planejamento da festa e na compra do seu vestido de noiva. E me perguntou se não existia alguma maneira de não ficar mutilada com a mastectomia.”
Decisão difícil

Com a retirada dos seios, a paciente perderia a chance de usar o vestido de seus sonhos. A única alternativa era submeter Beth a uma reconstrução mamária após a mastectomia – porém, este procedimento era contraindicado no caso, pois poderia agravar o câncer, já que a doença acometia a pele da paciente.
Daniel confessa que perdeu o sono por várias noites ponderando o que deveria fazer.
“Eu tive que pensar: fazer o que era habitual e ficar com a consciência tranquila por ter feito o mais adequado à sua saúde ou atender o desejo da paciente, que talvez não mudasse em nada o resultado final do tratamento, já que seu estágio já era grave. Dava medo porque não era comum na época abrir mão da mastectomia e isso poderia ter riscos. Eu poderia atrapalhar a vida dela ou abreviar a doença”, relata.
Novo jeito de tratar paciente com câncer de mama

Após vários estudos e discussões com a equipe que o acompanhava, ele optou, indo contra as evidências da medicina naquela época, por atender o desejo da paciente e realizar a cirurgia de mastectomia e de reconstrução volumétrica da mama para que a noiva conseguisse usar o vestido em seu casamento.
“A reconstrução não era e continua não sendo indicada para tumores localmente avançados por causa da chance de recidiva loco-regional”, explica.
Após os procedimentos, Beth seguiu com a quimioterapia paliativa e a radioterapia durante um ano e meio e conseguiu realizar o desejo de se casar e usar o vestido de seus sonhos. Após dois anos, no entanto, o câncer de mama evoluiu de forma drástica, causando a morte da paciente.
O caso transformou a maneira como o médico encara e trata o câncer de mama.

“Tenho certeza que, na época, fiz a melhor coisa para ela e fico feliz por ter contribuído com a felicidade e o sonho da Beth. Me lembro dessa paciente com um carinho gigantesco. Ela me mostrou uma forma diferente de tratar minhas pacientes e me deixou mais humanizado”, conta Daniel, emocionado, ao dizer que é um médico de sorte.
Desde então, ele se tornou um grande defensor de que a autoestima e o bem-estar da paciente são componentes fundamentais para o sucesso do tratamento.
“A mama é muito representativa para qualquer mulher. Representa bem-estar, sexualidade e poder de amamentação quando for mãe. Dar qualidade de vida é garantir a autoestima e o sentir-se bem, mesmo com toda a dificuldade da aceitação do diagnóstico e tratamento. É tentar minimizar os efeitos do tratamento, fazendo a paciente se sentir menos doente”, ressalta Daniel sobre a importância de cuidar da mente tanto quanto do corpo de suas pacientes.
Mudança de protocolo médico 9 anos depois

Em 2013 – nove anos após o caso de Beth -, foi criada uma lei que garante o direito de reconstrução imediata das mamas da mulher em casos de câncer de mama. “Olhando por este lado, vejo que não estávamos tão errados na decisão que tomamos para atender o desejo da querida Beth”, pondera Daniel.
Ele se refere à lei 12.802/2013, que obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a fazer a cirurgia plástica reparadora da mama logo após a retirada do câncer, quando houver condições médicas para tal. Tanto o SUS quanto os planos de saúde devem cumprir a lei.
Hoje, a customização do tratamento – ou seja, entender mais sobre a paciente e tentar adaptar as intervenções ao seu bem-estar – é cada vez mais presente na abordagem do câncer de mama. “Isso acontece na opção cirúrgica, na decisão da quimioterapia e até nas outras formas de tratamento. Ou seja, a decisão de cada etapa é feita em conjunto com a paciente para o bem de sua saúde física e mental”, relata o médico.
Atualmente, Daniel segue tratando pacientes de câncer de mama sem se esquecer da lição importantíssima que teve no começo da carreira: nunca menosprezar as queixas e vontades de uma paciente. Assim ele continua.
Câncer de mama
- Reconstrução mamária, transporte de graça: 10 direitos no câncer de mama
- Câncer de mama tem 4 tipos: diferenças e sinais para identificar cada um
- Câncer de mama se manifesta por 5 sintomas além dos nódulos