Como cada cena de “Atypical” revela um lado diferente da síndrome de Asperger

As produções originais do streaming Netflix têm retratado temas polêmicos que, até então, eram pouco discutidos. A mais recente é a série sobre autismo Atypical.

A trama aborda o início da sexualidade de Sam Gardner, um garoto de 18 anos que foi diagnosticado com  transtorno do espectro autista, e como isso afeta seus familiares.

Conversamos com médicos para entender o que é verdadeiro e o que é fictício quanto à condição apresentada na série. Confira:

Atypical representa apenas 20% dos autistas

Segundo o psiquiatra Leonardo Maranhão, diretor da clinica médica Assis,  Sam apresenta a síndrome de Asperger, um tipo de autismo leve em que os indivíduos têm inteligência normal, mas apresentam dificuldade de interação social.

“Esse quadro corresponde a apenas 20% de todas as pessoas diagnosticadas com autismo”, lembra o médico.

No outro extremo, estão os pacientes com autismo moderado e severo: a sensação de esmagamento pelo mundo exterior é tão intensa que eles possuem extrema dificuldade em se comunicar, chegando a ser completamente incapazes de falar, manter contato visual ou tolerar o toque.

“A ficção sempre retrata o autismo leve, mas aborda pouco como são os outros graus. Uma pequena parcela é como o Sam de Atypical, já os demais encontram desafios muitíssimo maiores”, complementa o especialista.

Embora trate somente de um tipo de autismo, a série cumpriu um papel importante ao colocar em pauta como é o transtorno.

Série retrata principais aspectos do autismo

Movimentos repetitivos

Logo no primeiro episódio o protagonista aparece realizando movimentos repetitivos com um elástico e uma caneta em suas mãos.

Esse comportamento é comum perante sentimentos conflitantes ou ansiosos e pode incluir uma infinidade de “manias” como balançar o corpo, andar em círculos e repetir frases ou palavras – duas ações que também são retratadas em Atypical.

Apego à rotina e dificuldade em lidar com mudanças

Quem tem autismo gosta de regras e de manter uma rotina, ou seja, não se dá bem com mudanças. Na série, Sam sofre uma crise nervosa ao ser rejeitado amorosamente, o que o faz ter comportamentos repetitivos e até mesmo autoagressivos.

Desorganização sensorial

Sam se incomoda com barulhos estridentes e luzes fortes, tanto que usa um fone de ouvido que abafa os sons exteriores. 

Essa característica é chamada de desorganização sensorial e pode incluir sensibilidade elevada a barulhos, luzes e até mesmo a estímulos físicos – como se tocado de certa forma ou encostar em determinados lugares. 

Honestidade excessiva

A honestidade da pessoa com autismo não tem cunho moralmente correto, mas é fruto da dificuldade em se colocar no lugar do outro, entender suas intenções e os limites do que pode ser dito ou feito.

Assim, o relacionamento interpessoal de uma pessoa do espectro é complicado e afasta especialmente quem não compreende suas limitações. Isso é amenizado por meio de tratamentos que visam à reeducação, mas ainda podem restar déficits de comportamento.

Dificuldade em entender piadas e expressões

Quem tem autismo possui dificuldade em identificar expressões faciais, malícias, entrelinhas, sarcasmo, piadas e sinais corporais, o que os faz dizer coisas rudes ou grosseiras, sofrer abusos morais ou simplesmente não entender o que se passa.

Uma das cenas da série deixa isso bem claro: a ex-namorada de Sam, Paige (Jenna Boyd) tem um ataque de raiva após o rapaz dizer que não a ama. Contudo, o protagonista não entende o que se passa e pergunta aos familiares e amigos “Ela está chateada?”, e recebe uma resposta positiva.

Depois disso, o jovem entende a situação, afirma sentir empatia e planeja se redimir.

Hiperfoco na Antártida

O interesse isolado e quase obsessivo por determinados assuntos é uma característica frequente no espectro autista.

No caso de Sam, ele mantém um hiperfoco na Antártida e pelos pinguins, o que é retratado pela imensa quantidade de vezes que ele fala sobre o assunto, sem se importar ou perceber o incômodo de outras pessoas.

O psiquiatra Leonardo Maranhão explica que a pessoa com autismo sempre tenta aplicar esses hiperfocos na realidade, com o objetivo de se relacionar de maneira mais amena com a sociedade. “Por exemplo, o protagonista consegue entender como são os relacionamentos humanos comparando-os com os animais da Antártida”, ressalta.

Listas são tentativas de organizar o mundo

Durante a série sobre autismo, Sam faz listas acerca de quase tudo. Para se ter uma ideia, ele chegou a fazer lista de prós e contras de uma “candidata” a ser sua namorada.

Pode parecer insensível, mas essa é a maneira de uma pessoa do espectro organizar o mundo. “A mente do autista funciona muito rápido, o que desorganiza os pensamentos e impede uma comunicação objetiva. Então, ele tenta entender e organizar os fatos a partir do mundo exterior”, afirma o psiquiatra Leonardo Maranhão.

O impacto do autismo na familia

Qualquer transtorno de desenvolvimento altera a dinâmica familiar e exige com que ela seja remodelada, o que nem sempre acontece:

Abandono paterno é comum

Na série da Netflix sobre autismo é revelado que o pai de Sam, Doug (Michael Rapaport), abandonou a família logo depois que o garoto foi diagnosticado. Segundo os psiquiatras entrevistados nessa matéria, o aborto paterno é muito comum após o diagnóstico.

“De 10 pacientes do meu consultório, nove vem com a mãe ou com a vó e apenas um vem com o pai. A rotina da criança exige muito e muitas vezes o pai não consegue encará-la”, esclarece Leonardo Maranhão.

“Pode ser uma decepção, porque todo mundo espera um filho brilhante. Descobrir que ele tem limitações é complicado”, explica o médico Francisco Assumpção, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Sobrecarga da mãe

Com o abandono paterno, a responsabilidade sobra toda para a mãe, que fica sobrecarregada com a tarefa de compreender os comportamentos do filho, cuida e ajudar a melhorar sua comunicação. A situação é ainda mais delicada no caso de autismo severo.

Em Atypical, a mãe de Sam, Elsa (Jennifer Jason Leigh), recebe o marido de volta meses após o abandono, mas ele tem dificuldade em se aproximar do filho. Assim, ela encontra consolo em grupos de apoio a pais com filhos pertencentes ao espectro autista.

Responsabilidade transferida para irmãos

A irmã mais nova de Sam, Casey (Brigette Lundy-Paine), se sente responsável por cuidar do irmão, especialmente na escola: ela enfrenta quem comete bullying com ele e todos os dias lhe dá o dinheiro para o lanche.

Tal situação é muito comum na vida real, já que o cuidado e proteção também são transferidos para irmãos.

Segundo o psiquiatra Francisco Assumpção, ainda pode haver sentimento de abandono ou sobrecarga por parte dos irmãos, especialmente devido ao cuidado elevado que os pais costumam ter com as crianças do espectro autista.

Quem tem autismo pode trabalhar e namorar?

Somente 20%, que têm alto funcionamento, consegue trabalhar e se relacionar amorosamente. Apesar disso, a tarefa não é fácil:

Mercado de trabalho não oferece oportunidade

A maioria das empresas apresenta resistência em contratar pessoas com autismo. Além disso, algumas áreas podem impor ainda mais desafios por lidarem com a comunicação, como direito e vendas. 

“Felizmente, já há empresas que fazem a captação de autistas para vagas de trabalho no mundo todo, especialmente na área de Tecnologia da Informação, visto que eles gostam de matemática e têm facilidade em encontrar padrões e fazer conferências”, explica o especialista Leonardo Maranhão.

Relacionamento

Apenas o autismo com grau leve consegue ter algum relacionamento amoroso. Apesar do comprometimento, eles têm sentimentos amorosos como qualquer um, mas a forma de expressar as emoções muda.

O psiquiatra Francisco Assumpção diz que é incomum encontrar pessoas com autismo que são casadas ou namoram, mas não é impossível. Nesse caso, é necessário apoio e busca de informação por parte dos pais e do parceiro.

Autismo na ficção e na vida real