4 histórias reais de aborto compartilhadas em página que viralizou em poucas horas

por | jun 30, 2016 | Saúde

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É uma escolha sua ser favorável ou contra a legalização do aborto. Mas nenhum desses posicionamentos muda o fato de que nós temos que ouvir as mulheres que já passaram por isso, mesmo aquelas cujas vozes já foram caladas em clínicas de aborto clandestinas, onde uma brasileira morre a cada dois dias. A campanha #meuaborto está fazendo isso e, em pouquíssimo tempo, muitas de mulheres já estão compartilhando suas histórias e se apoiando mutuamente na página no Facebook criada para o projeto.

#Meuaborto: a campanha 

Uma das organizadoras, a poeta e montadora de cinema Maria Rezende, explica que a ideia da campanha surgiu em meados de março desse ano, quando a polícia invadiu uma clínica de aborto clandestina no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro, e prendeu dois médicos e uma mulher que estava lá para abortar.

“Eu e um grupo de amigas ficamos muito chocadas com isso, com a ideia de uma mulher grávida, já fragilizada pela decisão de interromper essa gestação, e mais ainda pelo fato de ter que fazer isso de forma clandestina, certamente cheia de inseguranças e medo, ir parar na delegacia por conta dessa decisão”, conta Maria.

Em uma conversa com as outras idealizadoras da ação – Luiza Vilela, escritora e editora, Fabiane Pereira e Liliane Reis, jornalistas, Melina Ackerman, figurinista, e Ana Rios, atriz, surgiu a ideia de aproveitar a força das hashtags, pensando na ação #meuprimeiroassedio.

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“Conversamos muito sobre possíveis hashtags, porque sabemos do peso que a palavra aborto tem, e que ela poderia afastar muita gente. Mas acabamos achando que era importante abraçar também a palavra, e usar depoimentos pessoais e relatos íntimos para desmistificar a ideia de que quem aborta é sempre outra mulher, longe da gente”, explica.

De todas essas mulheres, cada uma foi trazendo mais amigas que poderiam somar e o grupo cresceu, cada uma fazendo o que podia a cada momento.

Do conceito inicial, surgiu uma página no Facebook para estabelecer as metas e o pensamento por trás da ação e um endereço de e-mail para receber relatos de quem quer contar sua história anonimamente.

A página entrou no ar ontem e já tem quase mil curtidas e muitos compartilhamentos. “Recebemos muitos relatos públicos com a hashtag ‘meuaborto’, que já foram publicados, e estamos recebendo muitas histórias anônimas, fortes, duras, o que só nos dá a certeza de que é preciso mesmo meter a mão nesse vespeiro e abrir esse porão”, finaliza Maria.

Depoimentos sobre aborto 

“Eu tive medo de pegar tétano, mas graças a deus nunca tive nenhum problema” 

“Eu tenho 73 anos. Me casei virgem aos 20. Logo engravidei e nasceu meu primeiro filho, um filho desejado e muito amado. Pouco tempo depois, engravidei novamente mas meu casamento não ia bem, meu marido estava desempregado e eu não quis levar aquela gravidez adiante. A gente morava no subúrbio do Rio e eu trabalhava na recepção de um consultório médico, então conhecia muita gente e sabia que tinha uma clínica em Olaria onde era possível abortar com segurança. O preço era um salário mínimo, eu tomei anestesia geral e recebi todos os cuidados, o médico até me deu o telefone dele pra ligar caso tivesse algum problema depois.

Depois eu me separei e fiz aborto outras vezes. Eu tomava pílula, cuidadosamente, usava espermicida mas engravidava mesmo assim, meu médico não entendia e nem eu mas aconteceu mais de uma vez. Eu era muito nova, ainda queria ter filhos e por isso não queria ligar minhas trompas. Eu sabia que tinha uma clínica em Botafogo mas essa era muito cara, seria impossível pra mim. Nessa altura essa clínica de Olaria tinha fechado mas tinham outras, essas mais clandestinas, sem tanta higiene. Eu tive medo de pegar tétano, mas graças a deus nunca tive nenhum problema. Uma amiga do meu irmão morreu de tétano depois de ir numa mulher que enfiou uma agulha de crochê pra provocar um aborto nela.

Anos depois eu me casei de novo e tive mais dois filhos, desejados e amados, e então liguei as minhas trompas. Eu nunca tive culpa de fazer os abortos porque tentava evitar engravidar mas muitas vezes não conseguia, e sei que tive muita sorte porque poderia ter morrido ou ficado com sequelas graves. O aborto já é uma realidade e tem que ser um direito da mulher, tenha ela dinheiro para pagar ou não”.

Depoimento oral, transcrito pelas mulheres da campanha #meuaborto.

“Sociedade que compactua com um sistema de clandestinidade” 

“Assim como a Joana* eu também escolhi o meu momento de maternidade. Engravidei em 1976 e em 1977. Não tinha o desejo de ser mãe. Fiz dois abortos com muita convicção. Em 1979 minha vida se modificou; casei e quis formar uma família. Em 1980 nascia João Henrique*, meu filho amado e muito desejado. Em 1982 veio o meu ruivo lindo e esperado, José Pedro*, no prazo que eu planejei. Por que milhares de mulheres continuam sem ter a liberdade de exercer seu desejo, seja pela razão que for? Ser mãe ou não, é uma escolha. Não é destino. Sociedade hipócrita que em nome de nem sei o que, compactua com um sistema perverso imerso na clandestinidade”.

Depoimento enviado por e-mail para as organizadoras da campanha #meuaborto.

“Meu namorado e eu não tínhamos a menor possibilidade, nem emocional nem financeira, para ter um filho” 

“Tinha apenas 20 anos quando engravidei. Meu namorado e eu não tínhamos a menor possibilidade, nem emocional nem financeira, para ter um filho. Mas o que fazer. Na época não podia contar para minha mãe. Imagina… [era] início dos anos 70. Apavorada com a situação busquei saber onde havia uma clínica. Descobri a que existia na Dona Mariana, no Rio de Janeiro. Era caro. Tinha que arranjar dinheiro. Eu e meu namorado acabamos dividindo…E tudo tinha que ser escondido.

Cheguei na clínica, sozinha, pois meu namorado não acordou para ir comigo (devia estar apavorado como eu estava). Fiquei numa sala de espera com outras mulheres e seus companheiros. Fiquei imaginando a vida de cada um. Me encaminharam depois de um tempo para uma sala, onde eu deveria fazer o pagamento em dinheiro. De lá fui para uma outra salinha onde me despi e coloquei a roupa de cirurgia. Era tudo um pesadelo…Me levaram numa maca para a sala de cirurgia e apaguei… Acordei numa espécie de enfermaria. Não quis ficar mais nem um minuto lá dentro. Me vesti correndo… Peguei um táxi e fui para casa (morava com meus pais). Fiquei ali, no meu quarto, sozinha…Infeliz. Foi isto.

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Hoje sou mãe. Amo meu filho mais que qualquer outra coisa na minha vida. Foi gerado com muito amor. Por um pai e uma mãe que queriam muito que ele nascesse. Que tinham condições de dar amor e carinho para ele.

Fico imaginando as meninas hoje. Tendo os mesmos problemas.

Temos que lutar para que isto acabe. Que se dê a liberdade de escolha para as mulheres. Que elas possam exercer esta escolha sem riscos e sem culpa.

Depoimento enviado por e-mail para as organizadoras da campanha #meuaborto.

“Aborto é uma questão de classe. É a classe média e alta que tem escolhas. São as classes baixas e periféricas que ficam expostas”

Tinha 27 anos. Estava num relacionamento estável, terminando a faculdade, realizando um projeto pessoal grande e oneroso, que estava saindo integralmente do meu bolso. Estava feliz, apaixonada pelo meu namorado e muito feliz com meu trabalho autoral.

Tomava pilula há 6 anos, sempre alternando 4 meses de pílula e 01 de pausa. Minha última consulta com ginecologista tinha sido 3 meses antes. Na ocasião, ela me disse que caso eu achasse que era hora de engravidar, faríamos uma preparação com ácido fólico e vitaminas, para que o processo fosse mais rápido. Com tantos anos de pilula seria difícil engravidar assim de cara.
Um engano.

Minha menstruação não veio na pausa da pílula. Fiquei preocupada, mas não o suficiente, não acreditava que poderia estar grávida.

Em duas semanas comecei a sentir muito cansaço, sono e fome. Muito mais do que jamais senti. Achei que era ansiedade, coisas normais de um período de dedicação intensa ao meu projeto.
Passou mais um mês e tomei coragem de fazer o exame de farmácia. 3 exames positivos. Fiquei em pânico. Todas as possibilidades eram ruins: ter era impossível, não ter além de proibido, era como entrar pra um grupo de pessoas marginalizadas. Um nebuloso grupo de mulheres clandestinas. Jurava que nunca estaria nesse grupo. Torcia para que jamais estivesse.

Procurei ajuda de amigas e conhecidas, e entrei pra rede invisível de apoio mútuo entre mulheres. Descobri uma clínica em uma outra cidade, e percebi que seria impossível arcar com os custos do procedimento. Pedi dinheiro emprestado. Meu namorado também. Somamos forças, abri mão do meu projeto e fui para essa cidade com o coração na boca me tornar oficialmente clandestina.

A consulta e o procedimento custavam ao todo R$ 4.000,00. Era um valor que nunca havia passado assim livremente na minha conta bancária, a não ser que fossem salário de 2 meses. A consulta foi ótima, a equipe médica super atenciosa. Conversamos sobre o absurdo da privação de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Me senti segura.

Fui ao banco sacar o dinheiro. Era muito dinheiro para sair em mãos. Na hora de pagar, entrei numa sala fechada e tirei o dinheiro em “cash”, a pessoa o contou na minha frente. Me senti suja. Me senti parte de uma parcela privilegiada da sociedade que pode arcar com suas escolhas, que pode sustentar o moralismo da legislação retrógrada porque se “o bicho pegar” tem pra onde correr.

Fiquei triste.

Fui encaminhada para o ambulatório onde faria o procedimento. É tipo uma sucção (eu estava com 09 semanas, portanto esse era o método mais seguro) de dentista. Recebi um remedinho intravenoso pra dormir. Me explicaram que duraria 6 minutos o procedimento e que eu dormiria por mais 40 minutos pelo efeito do remédio. Recebi antibióticos e anti-inflamatórios intravenosos. Quando acordei, fiquei deitada mais 1 hora e fui muito bem tratada por todos. Fui aconselhada inclusive a beber um vinhozinho no jantar, pois já estava tudo bem agora.

Penso que um procedimento ambulatorial seguro e simples não pode ser negado à totalidade de mulheres. Não pode ser trocado por ambulatórios e clínicas igualmente caras, mas que pela falta de fiscalização ou pelo moralismo dos funcionários tratam as mulheres como meros pedaços de carne. Não é justo.

Aborto é uma questão de classe. É a classe média e alta que tem escolhas. São as classes baixas e periféricas que ficam expostas a violências, a riscos de saúde e a procedimentos inseguros.

Todas nós, no entanto, estamos vivendo na clandestinidade. A luta pela descriminalização do aborto precisa ser uma luta de todas nós, porque não só a clandestinidade é uma violação de direitos. O medo de ser descoberta é uma violência. O tabu de se falar sobre é uma violência. A impossibilidade de conversar sobre isso abertamente é uma violência.

Somos violentadas todos os dias.

Precisamos falar sobre o aborto, precisamos nos ajudar.

*Todos os nomes foram omitidos ou trocados para preservar a identidade dos envolvidos.

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Conte sua história 

Caso você queira contar a história do seu aborto ou de alguma mulher que você conhece, mande um e-mail para meuaborto@gmail.com ou entre na página Meuaborto e mande sua mensagem. Outra forma de compartilhar sua experiência, mas desta vez contando seu nome, é usando #meuaborto no Facebook.

Aborto no Brasil 

Atualmente, o aborto é considerado crime no Brasil. São abertas exceções apenas em caso de anencefalia fetal (quando o feto não tem desenvolvimento completo de cérebro, ponte e bulbo), risco de morte da mãe e estupro. Nesses casos, as mulheres são acolhidas e avaliadas por uma equipe multidisciplinar que, conjuntamente, decide sobre a realização do procedimento. Saiba mais sobre essa realidade no vídeo abaixo:

*Matéria publicada em 27/04/16.

Você viu? Seu direito a aborto em caso de estupro pode ser tirado de você