“Jejum de dopamina”: é real que técnica viral de bem-estar priva de sexo e celular?

Abdicar de todos os pequenos prazeres do dia a dia em prol da concentração: é desta forma que o chamado “jejum de dopamina” é interpretado por muitos toda vez que “ressurge” nas redes sociais.

Sugerida em 2019 pelo psiquiatra norte-americano Cameron Sepah em uma postagem que viralizou no mundo todo, porém, a técnica não envolve literalmente privar o corpo da produção deste neurotransmissor – algo impossível – nem viver uma vida sem prazeres como muita gente acredita – e pode, segundo especialistas, ser benéfica quando interpretada corretamente.

“Jejum de dopamina”: o que é e como surgiu

Popularizada a partir de uma postagem no Linkedin, o chamado “ jejum de dopamina” foi proposto pelo psiquiatra Cameron Sepah, que também é professor-assistente na Universidade da Califórnia e, em 2019, compartilhou a técnica no próprio perfil. No texto, ele apresenta a técnica como uma espécie de treinamento para a mente, visando reverter o “vício” em prazeres rápidos como o ato de, automaticamente, ver uma notificação no celular assim que ela aparece.

A ideia, conforme explica o psiquiatra, se baseia em um mecanismo do próprio cérebro. Quando se faz algo, se obtém prazer nisso, os estímulos ligados a este ato (como o som de uma notificação chegando) já se tornam o suficiente para gerar a vontade de repeti-lo. É um condicionamento – e, com o “jejum de dopamina”, a ideia é romper isso, dessensibilizando o cérebro e conquistando mais autonomia sobre as próprias ações.

Vício em celular
amenic181/Getty Images/iStockphoto

“Com treino suficiente, estímulos não-condicionados que nunca vimos antes – como uma notificação no seu telefone – podem virar estímulos condicionados, porque nós aprendemos a antecipar a recompensa (tanto a de aliviar emoções negativas ou ver algo novo). Este reforço duplo pode levar a comportamentos impulsivos e viciantes porque sempre que nos sentimos entediados, ansiosos, irritados, tristes ou solitários, buscamos estas coisas para anestesiar as sensações ruins e nos distrair com prazeres”, afirma ele no texto.

No post, o psiquiatra cita ainda tipos de comportamentos que podem, quando geram desconforto na pessoa, ser melhorados com a técnica. São eles: hábito de comer emocional, uso excessivo de redes sociais e jogos, hábito de fazer apostas e comprar excessivamente, vício em pornografia e em masturbação, uso de drogas recreacionais e a busca intensa por experiências e sensações sempre novas e complexas (mesmo sob riscos físicos, sociais, legais, financeiros, entre outros).

Para alguns especialistas, no entanto, a técnica não é algo novo. Em um artigo publicado no blog da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, o médico e educador Peter Grinspoon, instrutor da escola de medicina da universidade, chegou, por exemplo, a comparar o “jejum de dopamina” com outras práticas já bastante conhecidas e recomendadas por especialistas. “Isso tudo soa sensível, mas não necessariamente bom ou inovador. Na realidade, se parece muito com muitas práticas de mindfulness [atenção plena] e uma boa higiene do sono”, apontou ele.

Técnica viral tem diferentes interpretações

Fazer
fizkes/Getty Images/iStockphoto

De acordo com o psiquiatra autor da técnica, pequenos prazeres do dia a dia podem se tornar vícios e, com isso, atrapalhar a concentração, o trabalho e outras tarefas. Com isso, o “jejum de dopamina” chamou atenção especialmente de trabalhadores do Vale do Silício, famoso polo tecnológico dos Estados Unidos – e, apesar da intenção ser boa, isso gerou uma série de interpretações equivocadas sobre a técnica.

Conforme cita o médico Peter Grinspoon no artigo do blog de Harvard, formas bastante prejudiciais de executar a técnica começaram a surgir por quem busca “gastar menos energia cerebral” com a produção de dopamina. “São versões do jejum que se baseiam em equívocos sobre como a dopamina funciona no nosso cérebro. Não estão comendo, se exercitando, ouvindo música, socializando, falando mais que o necessário”, pontuou especialista – e, com estas interpretações pipocando, a técnica não agradou em nada boa parte das pessoas.

Nas redes sociais, por exemplo, a ideia (equivocada) de “jejum intermitente” que tem sido adotada por algumas pessoas foi recebida com inúmeras críticas. Para muita gente, a orientação de evitar os prazeres do dia a dia em prol da produtividade, beira o ofensivo:

É possível fazer jejum real de uma substância produzida no corpo?

Ao Tá Saudável, a neurologista e neuroimunologista Inara Taís de Almeida, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, explica que a dopamina é um tipo de neurotransmissor, algo que pode ser definido como um “mensageiro químico”. Ao comunicar mensagens entre as células do cérebro o restante do corpo, ela tem funções importantíssimas, atuando, por exemplo, nos movimentos, na memória, no comportamento, na cognição e na atenção.

Uma das funções mais conhecidas deste neurotransmissor, porém, é a ligada ao prazer: ao circular, ela é responsável por gerar sensações de satisfação e contentamento. É ela, por exemplo, a responsável pelo prazer que surge ao consumir um alimento gostoso, e uma das substâncias ligadas ao orgasmo. Isso tudo mostra que, independente do comportamento, a dopamina segue sendo produzida pelo cérebro e, com isso, segundo a médica, não é possível fazer, literalmente, um jejum.

A neurologista explica ainda que, apesar de circular nas redes a ideia de que abdicar de prazeres melhora a concentração, o que pode acontecer é justamente o oposto. “Nossa concentração está relacionada ao interesse que temos na atividade. Ou seja: as atividades mais prazerosas terão nossa maior concentração, e também serão, possivelmente, as que produzirão maior aprendizado”, pontua a médica.

Dopamina é um neurotransmissor ligado à satisfação
Cinefootage Visuals/Getty Images/iStockphoto

Como o “jejum de dopamina” realmente deve ser feito

Ainda que a interpretação de muitos sobre o “jejum de dopamina” seja a de que a técnica consiste em literalmente evitar a produção da substância pelo corpo, esta ideia é, além de derrubada pela ciência, refutada pelo próprio criador da dela, Cameron Sepah. “Deixando claro: nós não estamos fazendo um jejum da dopamina em si, mas de comportamentos impulsivos reforçados por ela”, escreveu o psiquiatra no post viral do Linkedin em 2019.

Ao contrário do que muitos imaginam ao ter contato com o termo, a técnica original não prescreve uma lista de coisas que não podem ser feitas. A ideia, segundo Sepah, é ter como alvo os hábitos ligados a prazer que, devido à frequência com que aparecem no dia a dia, estejam causando angústia, danos à rotina de trabalho ou à vida social e vício (ou seja, falta de habilidade de diminuir, mesmo tentando).

Para recuperar a autonomia diante de pequenos vícios como estes, Sepah afirma se basear em conceitos da terapia cognitivo-comportamental, e recomenda, por exemplo:

  • Se afastar fisicamente do estímulo ou dificultar o acesso a ele (ficar longe do celular ou guardá-lo em um local do qual é trabalhoso tirar são algumas opções);
  • Fazer algo que não tem relação alguma com o estímulo quando ele acontecer (sair para dar uma caminhada em vez de comer sem fome ao sentir raiva, por exemplo);
  • Usar sites e aplicativos que bloqueiam certas atividades online para garantir o controle;
  • Usar o momento do estímulo para parar, se concentrar e refletir sobre os sentimentos ligados a ele em vez de agir.
Manter o celular (e as notificações) longe é uma forma de praticar a técnica
BitsAndSplits/Getty Images/iStockphoto

Caso a ideia não seja eliminar um hábito ruim, mas apenas diminuir a quantidade de tempo gasta com eles e a urgência em interagir com estes estímulos, o psiquiatra recomenda estabelecer períodos para que isso ocorra. Os períodos sugeridos por ele para a realização destas atividades em quantidades mínimas são:

  • De uma a quatro horas no final do dia;
  • Em um dos dias do final de semana;
  • Em um final de semana a cada quinzena;
  • Em uma semana no ano.

Ele frisa, porém, que é importante levar em consideração as demandas da família e do trabalho na hora de seguir a “agenda” proposta por ele – e, além disso, também é aconselhável usar o tempo que antes era dedicado a estas atividades com novas formas de entretenimento, como pequenas viagens, diversão ao ar livre, leitura, etc.

Cuidados ao aderir

Ao aderir tanto ao “jejum de dopamina” quanto a outras práticas ligadas a bem-estar e que visam melhorar comportamentos compulsivos, é importante, em primeiro lugar, pesquisar. Buscar informações confiáveis e não cair em interpretações extremas muito popularizadas é algo essencial para garantir não só sucesso, mas segurança durante o processo. Além disso, para problemas claramente complicados, como alcoolismo e depressão, e comportamentos que oferecem riscos iminentes à saúde, é de extrema importância buscar auxílio médico especializado.